Checagem de fatos põe Netflix em xeque

Documentários dão como reais fatos que uma simples averiguação comprova serem falsos — às vezes, até absurdos

Giovanni Zagni, para o Poynter Institute

[ Tradução: Zelig ]

### Quando a disseminação da desinformação se tornou um tema importante no final de 2016, ela foi discutida principalmente em referência a redes sociais como Facebook e Twitter. Nos meses seguintes, sérios problemas relacionados à difusão de crenças pseudocientíficas, teorias conspiratórias e fake news surgiram também no YouTube e no WhatsApp. Até agora, o popular serviço de streaming de vídeo Netflix tinha se mantido fora de cena. Não mais.

Recente documentário de sucesso publicado pela plataforma lança dúvidas sobre o tipo de conteúdo que ocasionalmente pode ser encontrado lá, e traz à tona a questão da responsabilidade do provedor de conteúdo em relação ao controle editorial do material publicado em sua plataforma. É também um lembrete de que o conteúdo duvidoso pode aparecer em tantas formas e instrumentos quanto a internet foi capaz de popularizar. Aqui está a minha história.

Em 15 de maio de 2019, assisti a “Behind the Curve”, um fascinante documentário da Netflix sobre os chamados terraplanistas, dirigido por Daniel J. Clark e lançado no final do ano passado. É um excelente exemplo de como devemos abordar teorias marginais, nunca se entregando à impiedosa tentação de retratar esses crentes como aberrações ininteligíveis.

“Behind the Curve” equilibra com sucesso as alegações feitas pelos defensores da Terra plana com as posições de especialistas da comunidade científica, e faz um esforço genuíno para entender a psicologia das pessoas presas a essa estranha crença.

Mas a próxima sugestão oferecida pelo algoritmo da Netflix no campo das teorias da conspiração foi completamente diferente.

Em 18 de julho de 2019, assisti a um documentário chamado “Bob Lazar: Area 51 & Flying Saucers”. O filme estreou em 3 de dezembro de 2018 e se concentra em um homem chamado Bob Lazar, que ganhou notoriedade em 1989 após ser entrevistado por uma emissora de TV de Las Vegas. No vídeo, Lazar afirma ter trabalhado por alguns meses, no começo da década, em uma espaçonave alienígena em uma base secreta do governo chamada S4, supostamente localizada perto da Área 51.

A publicação do documentário de Bob Lazar no Netflix foi uma alavanca para a audiência, mas também gerou consequências na vida real. Depois de assistir ao documentário no início de abril, de acordo com sua conta no Twitter, o popular podcaster Joe Rogan recebeu Corbell e Lazar para uma longa entrevista de duas horas e meia, postada em 20 de junho em seu canal no YouTube.

Um estudante universitário chamado Matty Roberts viu o episódio e posteriormente criou um evento no Facebook chamado Storm Area 51, ganhando milhões de declarações de interesse de usuários e obrigando a Força Aérea dos EUA a emitir uma nota oficial “desencorajando” as pessoas de realmente tentar invadir instalações militares no deserto de Nevada. O evento no Facebook foi cancelado, enquanto a iniciativa foi direcionada para um crowdfunding e um festival planejado para o mês seguinte.

Reconstruções duvidosas

Claro, cada um de nós é completamente livre para manter qualquer crença que queira sobre OVNIs e a existência de uma enorme conspiração do governo dos EUA para manter o público alheio. Mas o documentário da Netflix traz uma longa lista de falhas graves em relação ao que apresenta como fatos reais.

O absurdo mais flagrante é uma cena na qual Lazar é presenteado com uma foto de um curioso dispositivo biométrico, um scanner de mão que supostamente aparece em suas descrições anteriores da “Base S4” (não há nenhum registro oficial de uma instalação com esse nome). Apresentado como uma tecnologia secreta nunca antes vista na internet, o scanner na verdade apareceu em uma cena do famoso filme de ficção científica “Contatos Imediatos do Terceiro Grau”, de 1977 – mais de uma década antes da primeira entrevista de Lazar. Mas tanto Corbell quanto Lazar reagem a isso como uma grande descoberta.

Este artigo não foi feito para desmascarar o documentário, então não vou me aprofundar sobre suas inconsistências. Mas “Bob Lazar: Area 51 & Flying Saucers” não parece ser único caso no Netflix.

Outros documentários duvidosos

A plataforma de streaming de vídeo também hospeda “Unacknowledged”, um documentário de 2017 que sustenta, entre muitas outras coisas, que Marilyn Monroe foi morta porque ela sabia muito sobre OVNIs como resultado de sua proximidade com os Kennedy (a propósito, “Unacknowledged” é apresentado como adequado para todos os espectadores, mesmo que seus títulos de abertura apresentem uma ampla gama de representações gráficas de violência). Ou “Alien Contact: Outer Space”, também de 2017, que se concentra em sinais alienígenas, alegando que somos bombardeados por eles em regularmente.

É possível, até mesmo provável, que esse tipo de material represente apenas uma pequena fração da imensa quantidade de conteúdo disponível na Netflix. Uma pesquisa por palavra-chave de “Teorias da conspiração” oferece apenas uma dúzia de resultados, entre eles “Behind the Curve”. E se apenas um punhado de títulos forem efetivamente problemáticos, isso significa que o problema pode ser facilmente corrigido.

Mas, até lá, a Netflix continua a hospedar documentários que normalmente são confinados a canais de TV a cabo obscuros e sem credibilidade. Disponíveis em uma plataforma que afirma ter mais de 150 milhões de assinantes pagantes em todo o mundo, eles têm o potencial de se tornarem populares e atingir um público extremamente grande –  como atesta a súbita popularidade da história de Lazar.

Tal conteúdo e o modo como o algoritmo Netflix faz suas sugestões parecem ser um ponto de entrada para as teorias da conspiração: as pessoas tendem a acreditar em mais de uma delas ao mesmo tempo, mesmo que sejam contraditórias.

Uma ampla diversidade de pontos de vista é boa para qualquer plataforma, incluindo o Netflix e, em última análise, todos têm direito à sua própria opinião. Mas, em muitos dos casos acima mencionados, não é apenas uma questão de opinião. Teorias de conspiração nesses documentários são apresentadas como fatos reais, mesmo que muitas coisas apresentadas como “provas” tenham sido repetidamente desacreditadas ou contradigam princípios básicos da ciência e da boa checagem de fatos. Há, sem dúvida, melhores maneiras de treinar o ceticismo saudável do que a edição tendenciosa de conspirações governamentais nebulosas.

Além disso, o Netflix é diferente do Facebook ou do YouTube, porque a plataforma tem um grau muito maior de controle sobre seu conteúdo – que, em princípio, nas outras redes sociais é gerado pelo próprio usuário. Este não é o caso da Netflix, que seleciona seus novos lançamentos, promove ativamente muitos deles e até mesmo encomenda a produção de novos materiais.

Mas se o controle editorial não inclui uma checagem do próprio conteúdo e, portanto, a coerência, a consistência e a veracidade das informações fornecidas aos telespectadores, então se trata de quê?

   

[ Giovanni Zagni é editor-chefe da organização italiana de checagem de fatos Pagella Politica. ]