Revolta da Vacina: quando o Positivismo virou negacionismo

A Revolta da Vacina

Jornalista Eduardo Aguiar lança e-book com uma seleção de cartuns e reportagens de jornais de 1904 que revelam os bastidores políticos e o contexto social de um dos mais marcantes episódios da história da saúde pública no país

A situação do combate ao Covid-19 no Brasil e as patuscadas federais em relação à imunização da população, agravados pelo negacionismo bolsonarista, trazem comparações inevitáveis com a Revolta da Vacina de 1904, quando Oswaldo Cruz tentaria pôr fim a um surto de varíola inoculando toda a população. Mas há uma diferença crucial: à época, quem lutava pela vacinação em massa era o próprio governo; oposição e boa parte da imprensa que era contrária acabaram desinformando e incitando o povo.

A obrigatoriedade deu um nó na cabeça dos positivistas, que se voltaram justo contra a ciência. Oswaldo Cruz, hoje elevado a patrono da saúde pública nacional, era enxovalhado diariamente nos jornais e precisou ser laureado na Europa, anos depois, para apenas então receber reconhecimento da população e da imprensa.

Muito já se escreveu sobre a Reforma da Vacina e suas implicações, mas ao se folhear os jornais da capital federal do ano de 1904 é possível acompanhar os bastidores políticos que resultaram em batalha, sentir o frescor das notícias, o calor dos bate-bocas, o pavor espalhado pelas ruas da cidade em meio ao caos, e até mesmo se colocar na pele de um cidadão carioca do começo do Séc. XX, obrigado a fazer dois a três cortes na parte superior do braço com uma lanceta de metal para inocular um líquido obtido a partir de pústulas de feridas de vacas doentes – e que muitos médicos diziam ser nociva. É possível, enfim, enxergar com outros olhos.

Para chegar o mais próximo possível dessa realidade, o jornalista Eduardo Aguiar consultou na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional mais de 300 edições de nove diferentes títulos de jornais que circulavam na capital federal em 1904, além de outras fontes, como a Casa de Oswaldo Cruz. O resultado é uma seleção de 60 cartuns, acompanhados de reportagens e declarações, compilados em um e-book que revela os bastidores políticos e ajuda a entender um pouco mais do contexto social que levou à famosa Revolta que colocou a capital federal de pernas para cima.

COMO POLÍTICOS E JORNAIS BOICOTARAM OSWALDO CRUZ

Quando Oswaldo Cruz foi nomeado Diretor Geral de Saúde Pública (cargo que corresponde ao atual de ministro da Saúde), em 1902, a capital do Brasil era uma verdadeira sucursal do inferno. Áreas totalmente insalubres, cheiro insuportável, ratos, baratas, mosquitos e todos os tipos de bactérias e vírus. A cidade fedia e o povo adoecia.

A Revolta da Vacina

Contra a febre amarela e a peste bubônica, o sanitarista promoveu uma desenfreada caça aos mosquitos e aos ratos. Embora criticado por políticos e zombado pelos jornais, as ações mostraram-se eficazes no médio prazo. Mas ele enfrentaria sua maior polêmica mesmo ao decidir que o combate à varíola só seria possível com a vacinação em massa.

Importante ressaltar que a vacina antivariólica já era obrigatória desde 1837 para crianças e de 1846 para adultos, porém essa lei jamais foi cumprida. Até porque os instrumentos de inoculação da época não eram exatamente convidativos: lancetas metálicas que escorriam o líquido para dentro do corte numa operação demorada, dolorosa e que muitas vezes resultava em infecções. O instinto fazia com que as pessoas fugissem.

“Assim, mais do que instituir a obrigatoriedade da vacina, a lei de Oswaldo Cruz dava ao Estado o poder de vacinar as pessoas a qualquer tempo, e de colocar em reclusão os que se recusassem a recebê-la”, explica Aguiar – que, além da pesquisa, selecionou e editou o material.

Desde que o presidente Rodrigues Alves enviou o projeto ao Congresso no início do ano, parlamentares ligados ao Positivismo imediatamente colocaram-se contra, elevando o tom das críticas e apelando até para as famigeradas fake news para tentar derrubar o texto na Câmara.

Vivia-se o auge do pensamento positivista – corrente teórica que pregava um ideal de progresso contínuo da humanidade baseado em uma interpretação científica da realidade. No Brasil, vejam só: os positivistas colocaram-se justamente contra a ciência. E, com o apoio de muitos jornais, acenderam o estopim de pólvora que viria a explodir o Rio de Janeiro em 13 de novembro de 1904.

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