“Nossas vidas não se resumem a uma luta eterna a favor de nosso país”. Veja entrevista com Felipe Hirsch

Texto: CAIO Marques | Fotos: Rafael DABUL

Uma conferência sobre Lima Barreto (1881-1922), autor homenageado da 15ª Festa Literária Internacional de Paraty, marcou a abertura da Flip 2017 na noite desta quarta-feira. Na cerimônia, Lázaro Ramos deu voz ao autor em apresentação criada por Lilia Schwarcz, autora da recém-lançada biografia “Lima Barreto: Triste visionário” (Companhia das Letras). A direção de cena é do diretor, produtor e dramaturgo Felipe Hirsch.

Hirsch, criador da histórica Sutil Companhia de Teatro, nos anos 1990 em Curitiba, dirigiu o grupo por 20 anos e conquistou mais de 150 prêmios, consolidando posteriormente sua carreira com outros trabalhos da fase “Ultralíricos”, como Puzzle. Nessa entrevista exclusiva à zelig, direto de Paraty, ele fala sobre Lima Barreto, novos autores contemporâneos e o Brasil atual.

– Sua carreira sempre se caracterizou por uma ligação muito intensa com a literatura “não dramática”, o que vem ficando ainda mais evidente em seus últimos trabalhos, Puzzles e a Comédia e Tragédia Latino-Americanas. Como você lida com a transposição da palavra escrita para a palavra na boca do ator em cena? Você identifica a dramaticidade ainda no papel? Já deu errado?

– Eu realmente acredito que o ponto não é a questão de adaptar ou não um texto literário para uma dramaturgia clássica. Tenho sim me aproximado cada vez mais da fonte literária para somá-la a grande quantidade de estímulos que um coletivo de artistas de diversas áreas como esse pode despertar. Por vezes, acho que a literatura não precisa de nenhuma adaptação. Outras, ela é só um pequeno pavio aceso. Mais que a dramaticidade, reconheço as ideias no papel. Se já deu errado? Na verdade, nosso resultado é raro e portanto acredito que poucas vezes dá certo. Quase sempre é uma longa busca através dos fracassos. E uma luz em algum lugar distante que é sua única satisfação.

Público lotou a abertura da Flip 2017.

– Lima Barreto, homenageado deste ano na Flip, experimentou a tragédia em vida, e sua obra reflete bem isso. Recentemente você trabalhou um texto do autor no espetáculo Comédia Latino-Americana. Como foi a experiência? Como Lima dialoga com o Brasil de hoje?

– Lima Barreto é o oposto do ufanismo insultuoso, é hilariante, integralmente vigente, e foi negado por todos em sua vida. Pela Academia de Letras, pelos modernistas, por brancos e pela própria história. Lima Barreto ainda hoje não é facilmente agrupável. Ainda causaria escarcéu com suas crônicas. Na minha opinião, ele sempre foi o maior porque nele não vejo traços de Laurence Sterne, do provincianismo da vanguarda Klaxon, nem de regionalismos novelescos. É uma essência independente e suprema que pagou a lucidez que tinha com sua saúde mental. Era um homem que olhava o subúrbio do Rio com um amor extraordinário. E que tinha a mesma hostilidade aos políticos de um Thoreau, por exemplo. Trabalhamos com A Nova Califórnia, que acho constrangedoramente reconhecível.

Lima Barreto, o homenageado da Flip 2017.

“Lima Barreto é o oposto do ufanismo insultuoso, é hilariante, integralmente vigente, e foi negado por todos em sua vida.”

– A própria sobrevivência da Flip já pode ser considerada um ato de resistência. Parece que estamos vivendo num desses momentos históricos de profunda mudança. Nestas ocasiões, a literatura sempre é uma das primeiras a estabelecer novos caminhos. Você já identifica essa reinvenção nos autores contemporâneos com quem vêm trabalhando?

– A Flip, para sobreviver, está se adaptando muito esse ano. Sou marinheiro de primeira viagem por aqui, e torço para que as adaptações e novidades deste novo formato sejam interessantes e bem recebidas. Vivemos um momento histórico de mudança, mas não muito diferente do que já aconteceu no passado. Estou trabalhando em um material sobre o final da década de 1950, início dos 60, em que existiam mudanças profundas no país a todo o momento, e existem muitas semelhanças: o final da Era Vargas, com Jango trazendo dinheiro para partido do Perón, e posteriormente, durante seu mandato, com o Plano Trienal, enfim… sempre foi muito conturbada a política brasileira. As mudanças acontecem em todas as linguagens e formas de ver o mundo, não só políticas e não só no Brasil, e nossas vidas não se resumem a uma luta eterna a favor de nosso país, ela tem que ser mais ampla do que isso. Sem dúvida, a Literatura têm refletido isso, tanto no nosso país como na América Latina e no mundo. Estranhamente, se lê mais no Brasil hoje; os jovens leem mais, por mais que não acreditemos, por mais que tenhamos a sensação de que estamos nos despedindo do papel, esse companheiro secular, e que nossas memórias estejam se tornando digitais e impessoais, através de suportes eletrônicos. O fato é que se lê mais. E claro, através dessa longa pesquisa que estamos realizando a partir da literatura brasileira e latino-americana, tenho me atentado na fala, no dualismo e na personalidade de cada lugar. Mesmo que todos esses países tenham passado por momentos semelhantes com as ditaduras de direita e esquerda, há semelhanças, mas também muitas particularidades em cada um deles. Não usaria aqui o termo reinvenção, mas a fala, o testemunho da literatura me ajuda a me aproximar e a compreender melhor o continente.

Dirigido por Hirsch, Lázaro Ramos lê Lima Barreto.

“Se lê mais no Brasil hoje; os jovens leem mais, por mais que não acreditemos, por mais que tenhamos a sensação de que estamos nos despedindo do papel, esse companheiro secular, e que nossas memórias estejam se tornando digitais e impessoais, através de suportes eletrônicos.”